segunda-feira, setembro 07, 2009

NA TERCEIRA VEZ...

Bem, esse é um conto que eu escrevi numa tarde ociosa, enquanto esperava a hora de uma aula de uma disciplina da universidade que acabei reprovando por faltas excessivas (não façam isso em casa, crianças!). A princípio eu escrevi de forma ininterrupta, sem parar p'ra pensar em palavras escritas certas ou detalhes conflitantes na história. Tudo apenas saiu de vez. Talvez como quando a gente vai ao banheiro depois de comer muito chocolate, mas essa comparação vai depender de sua aprovação do conto.

É uma história simples, inspirada em temáticas lovecraftianas (qualquer dia explico o que é isso... ou não!) e que tem como maior referência uma matéria que li há muito tempo atrás numa revista extinta de RPG (não era a Dragão Brasil) sobre mestrar aventuras de terror no estilo de Call of Cthulhu, com livros malditos e tudo mais. Na matéria, o autor citava uma idéia interessante: durante a leitura, o personagem percebia que havia uma mancha de tinta nas mão, resultante do manuseio do livro velho, e, no decorrer dos dias, essa mancha se moveria gradualmente até chegar na região do coração, quando começaria a sumir, como se estivesse se interiorizando em um coração antes puro...

Essa é minha versão da história...
(Mas não é nada muito elaborado... – esse parêntese estraga a deixa =P)
 
Na Terceira Vez...

Ewan estava sentado em sua mesa preferida, um trambolho de madeira antigo, cheio de fendas e marcas de caneta. Uma destas marcas, à qual Ewan pousara o livro, apresentava em uma escrita a ponta de faca os nomes "Laurie & Ewan". Era com certeza sua mesa preferida. Apesar da mesa de vidro na sala de jantar, era nela que almoçava e jantava, geralmente acompanhado de um livro, ou de uma revista em quadrinhos quando queria relaxar a mente. Sobre ela, chorara algumas vezes, cabeça baixa sobre os antebraços, depois de certas brigas com Laurie. Era uma companheira muda, uma cúmplice que jamais o reprovava ou aplaudia. Enfim, era uma boa mesa.

Ewan sempre parava nos dois terços do capítulo de qualquer livro que lia, tomava um gole de café (sempre puro e forte), olhava para o teto alguns instantes, depois pousava os olhos sobre a velha mesa, decifrando e reinventando as fendas e riscos sobre sua superfície. Depois voltava a ler. Desta vez, havia lido já mais da metade do livro sem tirar a visão daquelas palavras manuscritas num papel amarelo e empoeirado. Passava as páginas terminadas freneticamente. Quase não piscava, por isso seus olhos começavam a ficar avermelhadas. O ardor o fez levar a mão aos olhos, notou que os dedos estavam escurecidos com a tinta das letras tremidas do velho manuscrito. Tentou limpar rapidamente da calça, mas não adiantou muito. Não importava, precisava retomar a leitura.

Já era mais da metade da noite quando conseguiu retirar os olhos do livro pela segunda vez. Era um grosso calhamaço de 1024 páginas escritas a bico-de-pena. O volume apresentava uma encadernação precariada pelo tempo e manuseio. Era revestido com uma capa de um couro duro e marcado, no qual ainda era possível sentir pequeníssimos filamentos de pêlo, seja lá de que animal fosse. Ewan lia o manuscrito há prováveis dezoito horas interrompidas apenas duas vezes; a primeira a seis horas atrás. Seus olhos ardiam incomodamente. Passou os dedos novamente em sua vista. Talvez fosse o sono ou ardor, mas percebeu uma mancha, como de tinta de um livro velho, no seu antebraço. Os dedos estavam levemente mais limpos que antes. Pensou um pouco sobre o caso e, quase sem perceber, havia voltado a ler o tomo.

A noite estava silencioso. Passarinhos começaram a cantar e um tímido facho de luz solar atravessou a fresta da janela. Não era mais noite. Mas Ewan não sabia disso. A leitura do livro parecia provar a teoria de Einstein de que o tempo era relativo, pois Ewan tinha impressão de ter passado dias lendo o tomo durante aquela noite. A xícara de café estava fria, seu conteúdo quase intacto. Mas Ewan não percebera isto. Sequer percebia qualquer outra coisa que não aquela caligrafia tremida e pontiaguda, a qual sua própria caligrafia parecia querer imitar nas notas mais recentes que fazia da leitura.

A terceira vez que interrompeu a leitura (talvez o número tenha algo a ver, não sei...), os olhos estavam insuportavelmente vermelhos e inchados. Foi na terceira vez que Ewan pareceu sentir, pela primeira vez, um estímulo externo. Um raio de sol atravessava a fenda na janela e esquentava-lhe a pele. Foi na terceira vez que Ewan sentiu e fome e sede, pela primeira vez, em 27 horas. Na terceira vez, Ewan moveu o corpo e levantou-se de sua mesa preferida pela primeira vez. Foi ao banheiro instintivamente, pois sua visão era nada mais que um borrão de ardor. Sentiu calor e tirou a camisa suada. Talvez fosse sua vista afetada, mas jurara ter visto uma mancha de tinta, como a dos dedos e do antebraço, em seu peito, próxima à direção de seu coração. Mas achou que não fosse nada, afinal, três dias depois (Ewan já havia terminado de ler o livro) ela começou a desaparecer continuamente até que, mais quatro dias depois, nada mais restara.

Nem mesmo Ewan...

"Conhecimento real é saber a extensão da própria ignorância." (Confúcio)

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